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Escrever para gostar de ler

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“Saber” escrever e “gostar” de ler são habilidades intrínsecas, que dependem de estímulo – especialmente durante a alfabetização. Neste artigo, a escritora Januária Alves explica como a narrativa é um meio para o ser humano interpretar a si mesmo.

Artigo de Januária Alves "Escrever para gostar de ler". Foto: Shutterstock.

Por Januária Alves*

Dias atrás, conversei com um grupo de crianças de uma escola pública de São Paulo que haviam lido um livro meu. Este é um dos momentos mais gostosos dessa vida de escritora: o de encontrar com os leitores e ver como a história que escrevemos “se transforma” nas mãos e na cabeça de cada um deles, de forma única e especial.

Era uma turma de crianças de seis anos, em fase de alfabetização. Uma menina, muito interessada em saber o que fazer para tornar-se escritora, me perguntou: “Para escrever é preciso gostar de ler?”. Sorri e respondi prontamente que sim, que era impossível escrever sem gostar de ler. Ao acabar o encontro, a professora, preocupada com o estímulo à leitura, retomou a fala da menina e me questionou se acreditava que a escrita poderia conduzir os jovens ao gosto pela leitura. Achei sua pergunta preciosa e merecedora de uma reflexão mais ampla, como a que farei aqui.

Tenho trabalhado ao longo dos últimos 20 anos com produção de textos, especialmente os jornalísticos, por força das oficinas de jornais para crianças e jovens que desenvolvo. Nas atividades propostas, eles escrevem não só para ter contato com o texto jornalístico e aprender sobre sua produção, mas também para se expressarem e contarem suas histórias. Os resultados são sempre instigantes; mesmo para aqueles que no começo dos encontros declaram que “não gostam” ou “não sabem” escrever, o desafio proposto pelo “papel em branco” acaba se tornando estimulante. Todos, de um jeito ou de outro, quando menos esperam, produzem textos.

O contar e o escrever, assim como o ouvir histórias, estão intrinsecamente ligados à formação do ser humano. E este é um dado importante a ser considerado quando se deseja trabalhar com leitura e escrita, como bem explica a arte-educadora Gislayne Matos em A palavra do contador de histórias (Editora Martins Fontes):

“Segundo Richard Abecera as produções humanas se manifestam por meio de textos: orais, escritos, traçados, pintados, gesticulados. No ‘texto’ temos a ‘textura’, o ‘tecido’, a ‘tecelagem’, a ‘trama’ e vamos até o ‘tricô’. O que se trama é uma multiplicidade de fios, não da mesma matéria e nem da mesma cor e isso cria uma polifonia”.

Ou seja: “texto” é tudo aquilo que nos permite expressar a complexa teia de pensamentos, sensações, emoções e conhecimentos que fazem parte do nosso ser e que, muitas vezes, são tão difíceis de comunicar ao outro.

A narrativa faz parte da configuração da mente humana. Organizamos tudo em forma de histórias. Talvez por isto, ao escrever uma história, ou uma notícia, poema ou mesmo um história em quadrinhos (texto e imagem), entramos em contato com questões que nos inquietam, desafiam e nos fazem pensar. Acessamos, quando contamos ou escrevemos uma história, essas tramas e teias complexas para as quais, quase sempre, não temos respostas definitivas. Como disse A. S. Byatt, escritora inglesa, em “As infinitas histórias de Sherazade”,  artigo publicado no The New York Times Magazine e traduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo em 27/06/1999,

“Contar histórias é algo intrínseco ao tempo biológico, do qual não podemos fugir. Sobre nós (seres humanos), como sobre Sherazade, paira uma sentença de morte e todos pensamos em nossas vidas como narrativas, histórias com começo, meio e fim”.

Talvez por isto muitos digam que “escrever não é fácil”. Acho que não é fácil, mesmo: além de ter que organizar as ideias, que passam muito rápido pela nossa cabeça – bem mais rápido do que a nossa mão consegue escrever ou digitar –, a escrita exige elencar argumentos para dar um sentido ao texto, rever e revisar a ortografia e ainda entrar em contato com emoções e sentimentos profundos que nem sempre estão acessíveis para cada um de nós. Escrever – e ler – dá trabalho!

Chegamos aqui ao cruzamento da leitura e da escrita. Respondendo à professora, acredito – e comprovo esta hipótese em cada oficina que dou, não só de jornal, mas agora também de textos literários – que a escrita nos aproxima da leitura, pois o exercício de entrar em contato com “as histórias do mundo” que moram em nós faz-nos desejar conhecer outras histórias. Seja para compará-las com as nossas, seja para ampliar o nosso próprio repertório, para nos compreendermos melhor ou para nos ajudar a continuar perguntando.

Fato é que as crianças que escrevem textos acabam ampliando seu repertório literário. Acredito que, ao conhecerem o processo de produção de textos, compreendem melhor “o mundo da escrita e do escritor”, o que as aproxima da leitura (e da escrita). Acho mesmo que escrever e ler é… Só começar!

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*Januária Cristina Alvesibi é colaboradora pedagógica das Editoras Ática e Scipione. Atua como jornalista, infoeducadora e escritora, com mais de 25 livros publicados.


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